Archive for the Crônicas Category

Ensaio de daltonismo

Posted in Crônicas on julho 16, 2009 by ederfz

Acordo. O lençol branco, manchas queimadas do cigarro, caio para fora da cama. Vou até a cozinha. Visão embaçada, a reméla pinicando no canto da minha vista. Tem um resto de leite na caneca de aluminio. Cheiro. Parece azedo. Ligo a boca do fogão e coloco a caneca. Olho através da janela. Céu griz, nuvens carregadas de cinza. Enfio o indicador no olho direito, removo um naco de reméla, amarela, purulente. Aproximo o dedo da chama. A nháca derrete, pinga na chapa de inox do fogão, onde fica borbulhando. A espuma do leite começa subir. Chiando. Vai escalando as paredes da caneca até chegar na borda e transbordar. Desligo o fogo.

Esbarro na mesa com minha barriga. Um copo cai no chão. Quebra. O piso molhado. Ainda tinha um resto de vinho branco seco no interior do copo. O outro continua sobre a mesa. Vazio. Caminho por sobre os cacos. Dou alguns passos e tenho que parar. Retiro um grande pedaço de vidro da sola do meu pé. O sangue escorre em abundância. Negro. Vou até o banheiro. Ligo a torneira e deixo minhas mãos debaixo da água. Negro branco. Olho pra trás e vejo Cyntia, deitada na banheira. Deitada eternamente. A água cobre parte do seu corpo nú. Muito bonita e pálida. Os bicos de seus seios escuros, grandes aureolas, contrastam com a água clara, cristalina. Parecem duas ilhas. Seus olhos, arregalados, fitam o nada. Me aproximo. Observo aqueles enormes olhos, as púpilas dilatadas. Que cor teriam? Devia ter perguntado antes. Esfrego as mãos no vestido de Cyntia com força. Ainda tem o seu perfume. Vou para a cozinha. O leite já deve estar esfriando.

Limites

Posted in Crônicas on abril 9, 2008 by ederfz

-Parado ai, cara. Mãos pra cima. Isso é um assalto!

-Ok.

-Ok nada, pode ir passando a carteira.

-Aqui está.

-E esse relógio também.

-Prontinho.

-Pronto nada, me passa essa correntinha de ouro que você tem ai no pescoço.

-Ai está, amigo.

-Pode parar de gracinha e me dá a sua jaqueta pra cá.

-Sem problema.

-“Sem problema”? O que é isso? Por que você está tão prestativo assim comigo?

-É só um assalto. Eu já estou acostumado. Estou por dentro dos procedimentos.

-Acostumado? Procedimentos? Quantas vezes você já foi assaltado?

-O numero total eu não sei de cabeça, já perdi a conta. Mas hoje eu só fui assaltado duas vezes. Três, com essa…

-Só? Até parece que é pouco.

-Já levo na boa.

-Sabe, é tanta conformidade que até dá desgosto de roubar brasileiro. Essa apatia tira toda a adrenalina do assalto. Será que vocês não pensam no efeito que isso causa no assaltante? É humilhante.

-Desculpe, senhor. Dá próxima vez eu prometo parecer mais intimidado.

-“Senhor”? É disso que eu estou falando. Por isso mesmo que eu estou juntando uma grana pra ir pro exterior. Lá o pessoal valoriza o trabalho de um bom bandido. Lá eles tem medo da gente. Não é como esse povinho.

-Povinho? Você falou povinho? Tudo tem limites!!!

-É, esses brasileiros são um povinho que…epa! Tira a mão do meu trinta e oito… Devolve ele para…

-Cala a boca. Cala a boca, vagabundo. E me passa a carteira…

Amante

Posted in Crônicas on abril 9, 2008 by ederfz

Foi num pequeno clube noturno da cidade que Fabio a viu pela primeira vez. Escorado no balcão ele pedia um uísque quando a notou numa mesa. Ela bebia sozinha o seu drink. Devia ter por volta de trinta, mas seu corpo ainda não passara da faixa dos vinte, vestia um vestido preto longo, assim como seus cabelos. Não olhava para a porta a toda hora, o que fez Fabio acreditar que talvez não esperasse ninguém em especial, talvez esperasse qualquer um, e quem sabe não fosse ele. Pegou seu uísque e foi ate a mesa dela. Apontou com o dedo em direção a cadeira vazia a sua frente:

-Posso?

Ela não disse nada, apenas balançou a cabeça positivamente enquanto seus olhos o examinavam. Ele seguiu:

-Você espera alguém?

-Quem sabe!

Fabio gostou da resposta, era dúbia, mas lhe dava esperanças. Tentava se lembrar de algo que não lhe parecesse uma cantada antiga, mas lhe escapou:

-Não me lembro de tê-la visto por aqui antes.

-É a primeira vez que venho a esse bar. Meu namorado não gostava de sair muito.

-Seu namorado? E você continua namorando?

-Não, acabou. Já faz uns três meses.

-É, mas uma mulher linda como você não deve ficar muito tempo sozinha. Deve haver um monte de caras atrás de você.

-A verdade é que eu não estou querendo me prender a ninguém no momento, quero curtir um pouco a minha liberdade.

-Eu também não procuro nada serio, quero mais é curtir a vida.

-E essa aliança de noivado?

Fabio olha o dedo e nota a aliança de noivado, ali, descaradamente o entregando. Era natural que depois de tanto tempo flertando em barzinhos, pelo menos uma vez, ele acabasse esquecendo de tirar a dita cuja do dedo. Mas precisava ser justo com aquela gata? Atrapalhadamente ele tenta se explicar:

-E que…essa aliança…eu tinha…esquece.

Ele vai se levantando da mesa, mas ela segura a sua mão:

-Pode ficar, eu não me importo. Meu nome e Simone.

Fabio se senta e ali fica pelas próximas duas horas numa conversa calorosa. Quando a conversa esquenta demais eles decidem seguir para um motel. Lá Fabio tem a melhor noite de amor de sua vida, nada parecido com a sua noivinha, que era um lanchinho comparado com aquele banquete. Na manha seguinte eles se despedem, Fabio pede o telefone dela já esperando que ela diga que aquilo foi uma noite de loucura que não se repetiria. Mas Simone da o telefone dizendo que estará livre na quinta. Fabio esta nas nuvens, durante o dia não consegue pensar em mais nada a não ser naquela mulher deslumbrante. Telefona para a noiva e arranja uma desculpa para não vê-la. Depois de uma longa espera chega a quinta e o ritual se repete: drinks, uma conversa apimentada e um gram finale no motel. De manha Simone lhe diz para telefonar no sábado, se não houvesse problema por causa da noiva. Fabio diz que não tem problema e que se preparasse para sábado. Na verdade Fabio já tinha tudo muito claro na sua cabeça. No sábado ele a encontra, deslumbrante, no mesmo clube de sempre:

-Oi, gato.

-Oi, meu amor.

-A noivinha não reclamou de você deixá-la sozinha sábado de noite?

-Reclamou, mas não faz mal. Agora é ex-noiva.

-Como è?

-È isso mesmo, acabei tudo. Eu já não agüentava mais ela. O que eu quero mesmo è ficar com você.

-Então é isso? Você tinha de estragar tudo mesmo.

-Estragar o que?

-Eu já tinha te dito que eu não quero nada de serio. As coisas estavam indo tão bem assim, sem preocupações, sem cobranças.

-Mas não precisa ser assim. Nos podemos nos dar muito bem juntos.

-Pois saiba que eu não quero mais nada com você, adeus.

Simone deixa a mesa e o bar. Fabio fica ali bebendo e vendo a sua vida vendo a baixo. Depois de muitas doses ele decide voltar pra sua antiga noiva, ou pelo menos tentar. No dia seguinte ele vai a casa da sua ex-noiva e pede pra voltar. Mas ela não quer nem conversa, não depois dele ter dito que a traia freqüentemente e que ela parecia um vegetal na cama. Ate Fabio concorda que pegou meio pesado e resolve desistir, não tinha volta.

Mas ele não podia mais viver sem Simone. Ele a telefonava, mas ela desligava na sua cara. E foi numa noite, depois de percorrer muitos bares da cidade que Fabio a encontrou sentada a uma mesa, exatamente como a vira na primeira vez. Ele vai ate a mesa dela, que ao notá-lo faz menção de levantar da mesa e ir embora. Mas antes que ela saia, Fabio balança a mão na frente do rosto de Simone:

-O que é isso, Fabio?

-Não esta vendo a aliança? Noivo de novo. E agora com casamento marcado.

Ela se acalma e volta se sentar. Fabio explica que a noiva aceitou-o de volta desde que marcassem o casamento. O ritual de sedução se repete e os dois acabam no motel.

Às vezes Fabio ainda pensa em contar toda a verdade a Simone, que a ama e que não existe, literalmente, mais ninguém em sua vida, mas então o medo de perdê-la volta e ele recoloca a aliança do falso compromisso. Com o tempo Fabio foi aprendendo truques pra apimentar a sua relação, como passar um pouco do perfume da sua suposta noiva pelo corpo todo. Ou então se esfregar na parede de tijolos da sua casa para simular arranhões apaixonados da sua falsa noiva. E depois do falso casamento as mentiras atingiram um outro nível. Fabio ate teve de gastar um dinheirão para que um cara fizesse o álbum de casamento dele, é claro que tudo em montagem de computador. Tudo isso funciona como um ótimo afrodisíaco para Simone, que o leva as alturas. Os amigos de Fabio não entendem o porque dele não sair mais de casa, mas ele tem de ficar esperando os telefonemas que Simone faz esperando que a mulher dele atenda, para isso Fabio gravou uma fita com uma voz feminina perguntando quem fala. Fabio percebe que toda vez que a sua mulher liga ela fica muito excitada. Fabio não faz nem idéia de como isso vai acabar, já fazem mais de seis meses de casamento e ele ainda não tem coragem de contar a Simone que ela não é sua amante, que ela é a única mulher na sua vida. Ele já planejou para que sua falsa mulher morresse em um acidente de carro para que ficasse livre, mas teve medo de que isso afugentasse a Simone. Hoje a relação anda meio parada, Simone parece ter começado a perder o interesse, pelo menos ate semana que vem, quando Fabio contara a ela que ira ser pai…

Gork, o esquecido

Posted in Crônicas on abril 9, 2008 by ederfz

Num dia quente de verão, em plena savana africana, um grupo de cerca de vinte elefantes se refestelava num pequeno lamaçal. Refrescavam-se e conversavam entre si. Conversavam sim, lá na sua língua de elefante, a base de muitos sopros de tromba. Tudo ia muito bem até que um dos jovens elefantes, que estava bem no centro do lamaçal, cutuca com a tromba um outro que estava bem ao seu lado:

-Hei… você ai, será que você não podia me dar um pouco mais de espaço?

O elefante que estava ao seu lado o olha assustado e começa a se afastar lentamente, andando para trás. Os outros elefantes do grupo também notam que há algo de errado acontecendo e saem rapidamente do lamaçal. Apenas Gork, que acabara de cutucar o outro elefante, permanece em meio à lama. Ao longe todos os elefantes o observam e cochicham.

Então Falmir, o mais velho de toda a manada, e por isso mesmo o líder, sai do meio dos elefantes e aproxima-se de Gork. Mas não muito. E de fora do lamaçal o ancião o indaga:

-O que ouve com você, Gork?

-Nada, eu apenas pedi que ele me desse um pouco de especo.

-E como você o chamou?

-Ora Falmir, eu o chamei de “você”. O que tem de mais nisso?

-Você sabe que sempre chamamos os elefantes mais velhos pelo seu nome. Sempre. E me diga uma coisa: qual o nome daquele elefante?

-O nome dele? Bem, o nome dele é…é…Tudo bem, você me pegou. Eu esqueci o nome dele.

Ao Gork pronunciar essa frase bombástica o ancião da passos pra trás, surpreso. O grupo de elefantes também se exalta, e agora os cochichos se transformam em grandes sopros de trombas de assombro, que cobrem a savana. O ancião volta a falar:

-Então você esqueceu o nome dele? Você tem noção da gravidade disso?

-Sim, eu sei. Mas não é culpa minha.

-E o que é então? Pelo que eu saiba isso nunca aconteceu antes com elefante algum. Nós nunca nos esquecemos. De nada.

-È todo esse estresse do meu noivado com Fena. Mês que vem eu e ela vamos cruzar e eu ando um pouco nervoso com isso…

-Absolutamente não. Você não poderá cruzar com Fena enquanto estiver assim. E nem sequer deve se juntar ao grupo. Essa sua coisa pode ser contagiosa e não podemos arriscar a nossa raça. O que seremos de nós elefantes se começarmos a nós esquecer das coisas?

-Mas é estresse, e isso passa com o tempo. Não é contagioso!

-Não vamos nos arriscar. Você fica longe do grupo, pelo menos por um tempo. Daqui a algumas semanas eu volto a falar com você pra ver se você melhorou. Enquanto isso, nada de tentar cruzar com Fena! Entendeu?

-Tudo bem, eu entendi.

O ancião se afasta, resmungando pra si mesmo:

-Elefantes esquecidos. Só pode ser um sinal do fim dos tempos.

Gork fica no meio do lamaçal vendo a manada de elefantes se afastar. E no meio do grupo Fena, a sua prometida, que o olha com pena. Gork bate com raiva sua tromba contra a lama. Então ele se dá conta: como um elefante vive sem a manada? Ele nunca havia estado sozinho antes. E isso ainda mais agora, que ele tinha essas crises de esquecimento. Como sobreviveria? Gork descobre então o significado da palavra medo.

Para não se perder do grupo para sempre, Gork decide segui-los. Porem a uma distancia segura, pois sabe que os elefantes mais velhos podem estar pensando em eliminá-lo de uma vez por todas, pra que não ameace a espécie. E por ter esse medo de ser exterminado pelos seus companheiros Gork mal dorme a noite. Ainda, nas poucas horas em que pega no sono, se vê em meio a pesadelos horríveis, onde não se lembra de nada. Quais são as capitanias hereditárias? Quem descobriu a América? O que é uma célula somática? Gork tem certeza que sabe de tudo, mas não se lembra de nada.

E não são só as informações “irrelevantes” que ele esquece. Durante o dia Gork até sente dificuldades de se alimentar por seu esquecimento. Ele observa a imensa diversidade de plantas que existem na savana, mas não sabe com quais pode se alimentar. Gork esqueceu quais aquelas que não são venenosas e quais são as comestíveis. Esqueceu de todas, menos de uma, com a qual consegue se manter alimentado, apesar de ser uma planta que tem um gosto horrível.

Depois de duas semanas Gork já está mais magro e abatido. Ele passa os dias pensando em Fena e esperando que o velho Falmir venha tirá-lo daquela quarentena . Ao longe Gork vê a manada o olhar desconfiado.

Então no inicio da terceira semana Gork recebe a visita de Falmir. O ancião fica a uma distancia de dez metros e fala:

-E então Gork, sente-se melhor?

-Sim senhor. Totalmente recuperado.

-Então me diga qual o nome do elefante que você havia esquecido aquele dia.

Gork infla seus pulmões e solta um grande sopro com a sua tromba:

-O nome dele é Dior!!!

A manada que observava tudo a distancia balança as trombas de alegria. O ancião tranqüiliza Gork:

-Venha comigo, seu isolamento acabou. Está na hora de você cruzar com Fena e perpetuar a raça.

Gork acompanha o ancião. Feliz por voltar ao grupo, mesmo sem se lembrar exatamente quem é essa tal de Fena.

Com muito jogo de cintura (eu sei, elefantes não tem cintura), Gork consegue esconder suas freqüentes falhas de memória dos outros elefantes. Para isso ele evita ao máximo se comunicar com os outros, a menos que seja extremamente necessário. Por isso ficou conhecido entre a manada como Gork, o silencioso.

Afinal ele não deseja que os outros descubram que ele é um esquecido e que ele tenha de voltar ao isolamento. Ou ainda para uma pena pior que essa.

Apesar do esquecimento Gork se acasalou com Fena, teve filhotes, levou uma vida de cuidados extremos para não descobrirem esse seu “probleminha” e conseguiu envelhecer, ainda fazendo parte da manada.

O caso é que agora o ancião, líder da manada, está à beira da morte. E Gork é o próximo na sucessão.

Só que Gork não sabe mais os caminhos, os perigos, ou qualquer coisa sobre a selva. Tudo que ele faz é imitar os outros pra sobreviver. E ficar calado.

A única coisa que ele sabe é que a sua liderança será a pior que os elefantes já viram. Essa administração ninguém vai esquecer.

Cicatriz

Posted in Crônicas on abril 9, 2008 by ederfz

Num fim de semana qualquer, dois amigos conversam ao lado de uma churrasqueira onde restam brasas e espetos vazios. Ao redor deles oito garrafas de cerveja denunciam que a conversa já esta na fase das grandes revelações.

-Sabe, Pedro, eu acho que nunca vamos entender realmente o que as mulheres querem.

-Também acho que não, oh bicho mais complicado.

-Mas oh bicho bom.

-Isso é mesmo.

-Esses dias eu tava com uns amigos da facul lá no bar do Noronha, e dai nós, os homens da mesa, perguntamos as mulheres da mesa o que é que elas realmente queriam. Que tipo de homens elas esperavam que a gente fosse.

-E dai?

-A gente queria saber se elas queriam aqueles top models da tv, tipo paquito mesmo, ou se elas queriam algo mais bruto. Sabe o que elas disseram?

-Nem sei.

-Pelo menos pras seis que tavam ali na mesa foi uma unanimidade: queriam um cara mais bruto, do tipo machão. A Marcinha foi a mais radical, disse que homem que faz a unha e usa condicionador no cabelo não dava pra querer. E que bom mesmo era homem rústico, do tipo que tem cicatriz.

-Cicatriz?

-Rapaz, a mulherada da mesa ficou toda ouriçada quando o assunto foi cicatriz. Tai uma coisa que mexe com elas.

-Bom pra quem tem. Eu não tenho nenhuma.

-Pior que eu também não. E olha que quando moleque eu vivia me atirando das arvores como um macaco. E nada, nem um sinalzinho.

-Um dia eu e meu primo estávamos brincando com dois espetos e eu sem querer dei uma espetada na perna dele. Rapaz, aquilo ficou uma cicatriz que parece uma facada. Nos tempos de colégio ele vivia se exibindo com aquela cicatriz. Vai vê ate é por isso que hoje ele ta com um mulherão daqueles.

-Pior, que mulherão.

-Eu também queria uma cicatriz, mas as chances do cara ter algum tipo de acidente que deixe uma cicatriz é muito pequena depois dos vinte e cinco.

-E eu então? Tu acha que eu vou conseguir alguma cicatriz trabalhando numa contabilidade? Pode esquecer.

Os dois bebem em silencio por algum tempo. Ao redor doze garrafas de cerveja vazias. Ate que Pedro fala solenemente:

-Já sei o que fazer?

-Fazer do que?

-Da cicatriz, aquela sua historia de espeto me deu uma idéia.

-O que você vai fazer com esse espeto?

Pedro coloca a ponta do espeto dentro da churrasqueira, com o ferro em contato com as brasas de carvão e se volta ao amigo:

-Se a gente quiser pegar mais mulher a gente tem de fazer aquilo que elas gostam.

-Que é isso Pedro, tira esse espeto dai.

-É o seguinte Marcos, eu sempre quis ter uma cicatriz aqui o, no meu braço direito, bem no bíceps. É só tu pegar o ferro quente do espeto e dar uma passada rápida no meu braço. Depois fica uma cicatriz bacana. Que tu acha?

-Cara, que doideira. Tu tens certeza que quer que eu meta um ferro quente no teu braço?

-Eu só confio em ti pra fazer uma coisa dessas. E se tu quiser eu também posso fazer uma em ti.

-Uma cicatriz em mim?

-Qual é, tu mesmo disse que queria ter uma cicatriz. Fala ai, onde é que tu quer uma cicatriz?

-É, ate que uma cicatriz na barriga ficaria legal. Mais isso deve doer pra caramba.

-O que é uma dorzinha comparada com a gratidão da mulherada?

-E isso não pode infeccionar?

-Que nada. Ali o, pega o álcool. Depois agente passa o álcool em cima.

-Ta, mais eu não sei se eu vou ter coragem de te furar.

-Qual é cara? Tu e teu pai não marcavam gado no interior?

-Em primeiro lugar: era o meu pai que marcava, e em segundo: isso e bem diferente de marcar gado.

-Então eu faço em ti primeiro.

-Não, pode deixar que eu faço. Me dá o espeto aqui.

-Faz aqui o, não faz mais embaixo se não fica estranho.

-É só tu não te mexer.

-Perai, deixa eu me concentrar.

-Olha Pedro, acho que a gente não deve fazer isso. Aposto que se a gente não estivesse bêbado a gente não fazia uma loucura dessas.

-E é por isso mesmo que a gente tem de fazer agora, antes que a gente fique sóbrio.

-Ta, arregaça as mangas da camisa.

-Vai rápido.

Marcos aproxima a ponta do espeto lentamente em direção ao braço de Pedro, que começa a suar. Quando o ferro esta prestes a tocar o braço, Pedro grita:

-Para ai, parai. Não vai dar cara, isso deve doer pra caramba. Quem sabe a gente tenta outra hora?

-Acho bom mesmo. Era bem capaz de eu fazer a cicatriz toda torta.

Os dois ficam um tempo em silencio, como que em reflexão profunda. Ou bebedeira mesmo. Ate que Pedro quebra o silencio:

-O Marcos, me ajuda a levar essas garrafas pra dentro. Daqui a pouco os velhos chegam e isso aqui ta a maior bagunça.

Os dois juntam umas quatro garrafas cada e vão em direção a casa. Ao pisar no piso da área de serviço Pedro cai em cima das garrafas. Marcos ajuda o amigo a levantar e percebe que no chão ha, pelo menos, duas garrafas quebradas. Pedro olha pro seu antebraço e nota um enorme corte por onde escore sangue.

-Cara, da só uma olhada, meu braço ta todo ferrado.

-Bah Pedro, o negocio parece bem fundo. Vamos já pro hospital.

-Vamos. Mas é melhor chamar um táxi.

-Eu vou lá chama.

-Perai. Que qui tu acha: vai precisa de pontos?

-É quase certo.

-Ate que vai ficar uma cicatriz bacana.

-Tu não tens jeito mesmo. Vou chamar o táxi.

-Pode ir. E já vai se preparando, semana que vem a gente da um jeito de marcar a tua barriga.

Crianças Bonsai

Posted in Crônicas on março 26, 2008 by ederfz

Chegado o ano 2050 d.c do calendário cristão, a China atingiu o número preocupante de dois bilhões e meio de habitantes. Os seus quase dez mil quilômetros quadrados não eram mais suficientes para abrigar a sua imensa população, que cada vez crescia mais. Nem mesmo o crescimento vertical de suas cidades (tanto em direção aos céus, como de áreas subterrâneas, e até mesmo aquáticas), ou o controle de natalidade (a partir de 1982, fora instituído pelo Estado que só era permitido um filho por casal) foram suficientes para resolver o problema satisfatoriamente. O governo chinês analisava novas formas de conter a expansão populacional. Sabe-se hoje que fora até mesmo cogitado uma nova forma de controle de natalidade, com sorteios decidindo quais casais poderiam, e quais não poderiam, ter filhos. Mas o medo de um levante popular contra o governo impediu o prosseguimento do programa. O governo híbrido, um meio termo entre comunismo e capitalismo, sentia na época um forte desgaste pela recessão que o país enfrentava. Depois de ser considerado a grande aposta de superpotência do novo milênio, décadas antes, a China enfrentava um momento de revês na economia mundial, onde a Rússia, grande azarão de uma década antes, se levantava como a potência econômica e militar número um do mundo. Independente dos motivos que levaram a China aquele estado de recessão, uma coisa era certa para o governo: era de suma importância resguardar o direito Chinês de um filho por casal.

Os outros países viam com preocupação os índices demográficos da China. Principalmente as grandes potências, que temiam a possibilidade da China dar início a quarta guerra mundial, dessa vez motivada pela tomada de novos territórios.

Poucos dias após o anúncio dos preocupantes números demográficos, o governo Chinês convocou uma coletiva, prometendo apresentar uma solução para o problema de superpopulação nacional. Depois de um longo discurso, relembrando a historia da China, ressaltando momentos históricos e grandes nomes nacionais, o primeiro-ministro chinês conduziu os repórteres a um outro auditório. Lá se encontravam, pelo menos foi o que pareceu a primeira vista, dezenas de anões. Eram jovens de idades variadas, os mais velhos, que não passavam de cerca de vinte e poucos anos, não mediam mais do que um metro de altura. Logo em seguida o primeiro ministro explicou que não se tratavam de anões comuns, mas sim de anões anamorficos, que possuem baixa estatura, mas que conservam características físicas proporcionais ao seu tamanho diminuto. O que é diferente do nanismo mais comum na população, aquele onde membros e cabeça têm tamanho e aspectos relativos a pessoas de estatura normais o que, além de deixar o portador com o aspecto disforme, lhe acarreta inúmeros problemas de saúde. Aqueles indivíduos que ali se apresentavam eram o que se poderia chamar de mini-pessoas.

A forma como aqueles indivíduos desenvolveram tais características genéticas não viera da forma normal, através da herança genética de seus pais. A “anomalia” havia sido induzida por um tratamento médico, ainda nas primeiras semanas de gestação. O restante do desenvolvimento do individuo se dava de forma normal, segundo o primeiro ministro, não apresentando nenhuma diferença de uma pessoa dita “normal”, a não se a “vantagem” do individuo apresentar uma estatura de cerca de um terço de um individuo normal. Além de consumir um terço de alimento de um cidadão normal, ressaltava o ministro satisfeito.

Essa foi à solução apresentada pelo governo chinês: toda mulher em idade fecundativa deveria se submeter a um exame semanal de fertilidade. Assim que uma gestação fosse identificada a gestante deveria a se submeter ao tratamento hormonal que induziria o feto a se tornar um anão. A mãe que não se submetesse ao tratamento receberia pena de morte. E o feto não alterado, colateralmente, receberia o mesmo veredicto, ainda no útero da mãe.

Vozes do mundo todo se levantaram contra aquela medida. De todas as formas de cerceamento de liberdade já praticadas no mundo, aquela era uma das mais abomináveis. Governos se pronunciaram contra o plano Chinês, mas, pelo menos secretamente, sentiam-se aliviados da solução, pelo menos temporária, para os problemas demográficos chineses, que garantiriam certa estabilidade mundial. A ONU fez severas criticas contra a China, mas, como nos últimos 100 anos de sua existência, não tomou nenhuma atitude prática contra aquela nação.

A China prosseguiu com seus planos de miniaturização da população. A implantação do plano no nível obstétrico não enfrentou grandes problemas. Em poucos meses não havia centro medico que não se possuísse o tratamento morfológico necessário para se aplicar aos fetos. Dos grandes centros até as áreas rurais, havia o tratamento necessário para a modificação dos futuros mini-cidadões.

A parte difícil do projeto era adaptar o mundo para esses novos indivíduos. Era necessário miniaturizar os objetos do cotidiano. Desde os utensílios domésticos do dia-a-dia, até a estrutura arquitetônicas das dependências das casas, tudo deveria ser adaptado.

O passo seguinte foi preparar as escolas chinesas, que recebiam os alunos já aos três anos de idade. A preparação dos professores foi satisfatória, mas foi preciso um grande trabalho de conscientização para tentar eliminar a descriminação dos alunos de séries mais avançadas, que possuíam a estatura normal da época, e que se sentiam ameaçados com aquela nova raça que surgia. Muitas vezes as crianças daquela nova geração de baixa estatura foram hostilizadas. Elas acabaram por serem apelidadas de “Crianças Bonsai” pelos outros, os de estatura clássica. Entretanto em poucos anos as Crianças Bonsai já se tornaram a maioria, e então foi à vez do governo fazer campanha para que as Crianças Bonsai não hostilizassem as pessoas mais velhas de altura diferente das delas.

As Crianças Bonsai cresceram. As ruas começaram a se modificar. De orelhões públicos, cordões de calçada, balcões de atendimento, lojas, carros. Prédios e eram construídos com o pé direito baixo, possibilitando um numero maior de andares. Alojamentos populares possibilitavam um número maior de camas perfiladas, umas ao lado de outras, nas fileiras. Tudo fora adaptado para possibilitar que os anões e os altos vivessem em harmonia. E, alguns anos depois, os anões já eram maioria e assumiram a maior parte das colocações no mercado de trabalho chinês.

Passaram-se quase cinqüenta anos e, novamente, a China atingia o seu pico demográfico. Dessa vez eram quatro bilhões de habitante, a sua maioria composta pelos de baixa estatura. Mesmo com a redução de estatura da população, com a incorporação de novos territórios (Mongólia, Coréia do Norte e do Sul e Japão) e com as construções sob e sub-aquaticas, a vida na China estava ficando impraticável outra vez. O governo da China, que agora era um sistema capitalista semidemocrático (ainda se discute muito a validade dessa classificação hoje em dia), tentou novos experimentos com redução de estatura do ser humano. Mas as pesquisas esbarraram em impossibilidades biológicas do organismo humano para uma redução ainda maior de tamanho.

As nações do mundo esperaram apreensivas uma resposta da China ao problema. Como ela não vinha, as maiores potências do mundo, lideradas pela Austrália, que era a potência numero um no momento, reuniram-se secretamente para discutir o problema. O que foi decidido naquela reunião veio à tona dias depois.

Os dois pequenos assessores entraram correndo na sala do também pequeno secretário de defesa Chinês alertando que os radares detectaram um ataque de mísseis lançados em varias nações do mundo que, segundo os cálculos dos computadores de defesa, tinham como alvo a China. Mais do que rapidamente o Secretário se dirigiu ao botão vermelho que disparava o contra-ataque. Mas o botão era alto demais. A manutenção ficara de trocá-lo de altura na semana seguinte. Mas agora não restava uma semana. Tentou alcançá-lo subindo em uma cadeira. Não conseguiu. Os dois assessores, mais o ministro, fizeram uma pequena pirâmide humana. Mas também foi ridículo e inútil. Os dois assessores ainda correram, tentando trazer o velho, e alto, faxineiro do corredor. Mas foi inútil. Os mísseis choveram violentamente por toda a China.

Hoje em dia a China é um arquipélago formado por dezenas de ilhas. Onde, segundo relatos, vivem alguns poucos indivíduos de cinco metros de altura. E vivem tranqüilamente.