Arquivo para junho, 2009

Manual para ser um bom cão

Posted in Contos on junho 19, 2009 by ederfz

Para ser um bom cão existem regras. A mais importante é nunca morder a mão do dono. O dono -e isso não é difícil de identificar- é sempre aquele que alimenta o cão. Que também lhe dá a coleira e que aplica o corretivo.

Sua mão alcança o bife no meu prato. Já havia recusado. Não obrigado, estou satisfeito. Mesmo assim -e ele ouviu da primeira vez, sei que ouviu- coloca o bife no meu prato. O cão não tem opção. Não comer é uma desfeita com o dono. Um cão não tem vontade própria. A vontade do dono prevalece sobre a vontade do cão.

Come! È uma ordem. O verbo imperativo pertence ao dono. O cão fica com o verbo condicional. Eu quereria ser livre. Foder a cadela do dono. Lamber sua xoxota sebenta. Sorver os seus mamilos. Come-la e deixá-la cheia de porra pra que o dono pudesse ver que estive ali, no seu território. Não come! Diz o dono.

Não como.

Mastigo. Como um bom cão. O bife engasga em minha garganta. O dono sorri satisfeito. Não porque se delicie de ver o cão bem alimentado. Mas porque sabe que o cão não pode morder a mão que o alimenta. Seria reprovado por todos. O resto da matilha aceita, porque com ele seria diferente?

O dono está sempre certo. Quando não está certo não se pronuncia. Mas ele sempre se pronuncia.

A mão que bate é a mão que educa.

O bife é o poder.

O dono segura os culhões do cão, que só fode as cadelas quando ele permite. Aquelas que ele permite. Sua castração não é física ou química. È a castração do poder.

Desaparecido o dono – doce ilusão- os sintomas podem não desaparecer. O dono fica fazendo parte do cão. É a fece do cão que odeia a si mesmo. A parte que, mas do que aceitar a coleira, deseja a coleira.
Não sabe mais viver sem ela.

O cão chora pelas pessoas sem coleira, por elas tornarem o mundo tão insuportável, com seus ares de liberdade. Grandes merdas, a liberdade.

O cão aprende a amar o dono e a coleira. Não tem amor próprio.

O dono aprende a nunca amar o cão. Somente a coleira.

Eder Z
Um bom cão

Feliz dia das mães

Posted in Contos on junho 19, 2009 by ederfz

Molhando as fatias murchas de pão francês adormecido no café preto morno, lentamente, na manhã cinzenta. Pela janela da cozinha pode ver a sobrinha, vestido rasgado de chita, bichinho do mato, suga ranho, toquinho de gente, remexendo folhas secas com um graveto no pátio da casa.

Madrugadeira a bichinha, pensa, e sorve a massa encharcada, pingoteando gotas negras na mesa de fórmica. Bem diferente do pai dela. Bêbado ingrato. Encheu o cú de cachaça na noite passada e ronca como um trator no quarto dos fundos. Dorme o sono dos justos, o filho da puta. Nem pra acordar e procurar um ganha pão serve o canalha.

A menina pára de mexer nas folhas e olha curiosa para o lado. Os olhos de um negro opaco, cheio de remelas, começam a brilhar.

Deve estar cuidando alguém que passa na calçada, pensa o tio bocejante.

A garotinha resmunga algo baixo, pra si mesma. Depois vai repetindo num crescente.

-Mãe??? … Mãe! Mãee!! MÃEE!!! MÃNHEEE!!!

Pega a xícara de café com um naco de pão submergindo do líquido preto e vai até a janela. Ainda a tempo de ver a mulher, cara rebocada de maquiagem, roupa de baile, mancando no salto alto, passos rápidos de não tenho nada a ver com isso, desaparecer na curva da esquina, sem olhar para a garotinha ou para ele.

-Viu tio? Era a mãe! Diz a menina, eufórica, pulando e apontando.

-Era nada, menina! Deixa de besteira.

-Era sim! Eu vi que era.

Beicinho de muxoxo.

Irá. Atira a xícara dentro da pia. Asa quebrada tilinta nos pratos sujos. Café preto e cinzas de cigarro.
Maldita chocadeira dos diabos! Agulha afiada lhe fura os olhos por dentro.

Anda com raiva. Bate a bacia contra a quina da mesa, mas não pára. Pé na porta onde o irmão bebum dorme.

-Se aquela vadia passar aqui na frente de novo eu arrebento ela. De todas as mulheres tinha logo que se enrabichar por uma
rameira dessas? Juro por Deus que arrebento aquela vaca.

Hã? Resmunga o irmão semiconsciente. E volta a dormir.

No pátio a menina funga, choramingando, revirando as folhas em busca de uma minhoca fora da terra.

Eder Z
Órfão de mim

Pornoamor

Posted in Contos on junho 16, 2009 by ederfz

O terceiro dedo entrou. Ela começa a chorar pedindo que eu pare, que estou rasgando. Não paro, vou mais fundo nas suas entranhas. Sinto a contração angustiada dos músculos de seu ânus tentando me expulsar. O esfíncter sendo esticado como um elástico. Meus nós desaparecendo dentro do seu corpo.

Minha mão direita é um carrasco. A esquerda coopera, segurando suas ancas. Grita como uma doida. Esperneia tentando fugir de mim. Vira seu rosto encharcado. Me encara pedindo piedade, chorando.

-Não foi você que pediu por isso? Tem que fazer mais pra se destacar nesse ramo. O filme ta rodando. Vai amarelar?

Sou o quarto dedo. Rasgo seus pedidos.

O câmeraman para e olha pra mim do lado da câmera, sem saber o que fazer.

Aponto o indicador.

-Volta pra trás da câmera, seu puto! Filma! E você para de chorar. Já to tirando.

Vou tirando devagar, ouvindo os ais dela misturados com gritos. Tem sangue nos meus dedos. O anular, o médio e o indicador manchados, rubros.

Parou de gritar, mas chora e soluça. O ranho escorrendo do nariz sobre sua boca. Limpo os dedos no lençol. Estico a mão esquerda pro assistente que me dá uma toalha.

-Pronto, já acabou. Chega de manha…

Limpo seu rosto. Sua boca.

-Assua!

Ela sopra o nariz com força. Faço uma trouxa com a toalha.

-Vira de bruços!

-Não, para por favor!

-Calma, não vou fazer mais nada.

Vira a bunda pra cima. Rosa ferida. Está tremendo.

Passo o pano devagar no meio do seu rego. Fica uma estria vermelha no pano imaculado. Parece o mapa de um rio de sangue.

-Pronto, pronto. Olha pra mim.

Vira a cara, maquiagem borrada nos olhos. Lagrimas de lápis negro, fungando baixinho. Cachorrinho perdido. Tenho pena.

-Sabe que eu te amo. Não sabe?

Ela balança a cabeça afirmativamente.

Passo o braço atrás de sua cabeça e a puxo contra meu dorso.

Escorra a testa no meu ombro e chora baixinho.

A equipe me olha, em silêncio. Faço sinal de positivo para o câmeraman com o polegar.

-Pode desligar, vamos continuar a gravação daqui a pouco.

Pego a aliança no bidê ao lado da cama e coloco no anular da mãe esquerda.

-Fica ai que vou buscar uma água pra você.

Passo a mão no seu cabelo. Sou todo dedos.

Eder Z
O quinto dedo

Bolor

Posted in Contos on junho 16, 2009 by ederfz

Sorvo o uísque quente. Desce ardendo pela garganta seca. Gosto da queimação no meu esôfago. A dor me diz que ainda estou vivo. Viver me diz que ainda está doendo. Possivelmente vai doer mais antes de parar.

Dou uma tragada no cigarro e solto as cinzas no carpete. Vivo nesse lixo a tanto tempo. Não tenho porque limpar essa merda. Não sou melhor que esse lixo. Posso sentir o cheiro do bolor que se acumula na cozinha. Se houvesse uma máquina pra enxergar a minha alma sei que achariam algo parecido. Manchas verdes se acumulando pelos cantos do meu ser. Um fedor de azedo que arde na base do nariz e queima os olhos. Não tem mais volta.

Os vizinhos gritam um com o outro. Uma criança chora. Alguém está gemendo alto. Estão fodendo ou estão morrendo? Não dá pra saber se é gemido de copula ou de dor. A boa transa dói, dá vontade de chorar baixinho. A última transa antes de me separar com a Ângela foi a melhor. Mas também foi a que mais doeu. Ela chorou. Fodi ela como nunca antes. Não pedi que ela ficasse, sabia que não dava mais. Vou até o fundo do poço sozinho. Naquela época não disse nada a ela, mas se pudesse voltar até aquele instante em que ela me olhou na porta da garagem, enquanto seu carro dava a ré, diria isso. Não quero te levar junto. Vou me atolar nessa merda sozinho.

Levanto a minha mão e olho pelo friso entre o dedo médio e o indicador. Vejo a luz da lâmpada 60w, meus olhos doem. A beira dos dedos está amarelada. Estou todo amarelado.

Agora não deve demorar muito pra que eles abram a porta a força. O síndico já bateu umas quatro vezes na porta hoje. Meu irmão, aquele porco, vai acabar aparecendo também. Maldito cú preso. Não dá um passo sem que a mulher autorize.

Tudo bem, já fui longe demais pra voltar. Espero que o trinta e oito não emperre. Cinco balas. Se tudo der certo preciso no máximo de três. Uma pro síndico. Outra pro policial. E uma pra mim. Estão batendo na porta de novo. Dessa vez vão abrir. Podem entrar, seus putos. Amanhã eu ia sozinho. Hoje eu levo vocês junto. Sinto as manchas verdes crescendo. Não tem como retroceder mais.

Eder Z
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